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INÊS RAMOS
( Portugal )
Natural de Lisboa, mas a residir em Azambuja desde os 22 anos, a autora tem poemas publicados em colectâneas diversas e escreveu a letra de uma música - Fado Negro da Cor - com o seu amigo Miguel Ouro.
Quando se fala em Poesia e BD, necessariamente, falamos de Inês Ramos, uma artista gráfica portuguesa a quem Cabo Verde se colou à pele.
SULSCRITO 3 junho 2010. SULSCRITO antologia da indiferença [Tavira, Portugal: 4águas editora] 87 p.
ISSN 1646-7744 [Tavira, Portugal: 4águas editora] .
Ex. bibl. Antonio Miranda
Era já dia claro quando a tua morte me foi anunciada num
telefonema curto que me atingiu como uma bala.
E de súbito todo o passado regressou.
A minha infância no Estoril
as galinha na capoeira, o perú para o Natal que corria
sem cabeça pelo pátio, depois de degolado.
Anos antes, as brincadeiras de caricias no átrio
do quartel da Pontinha, o jogo das cinco pedrinhas com o filho
do capitão
o rastejar atrás dos pintos por entre as canas do feijão-verde
o cheiro dos cozinhados que vinham da janela da cozinha
as histórias depois do jantar sobre os tempos de fome —
uma sardinha para três.
E a minha solidão de menina abandonada
apaziguada pela mãos grossa do avô militar que
inventava coisas com objetos apanhados no lixo —
foi assim feita a minha primeira bicicleta.
De volta ao Estoril, dias claros, pedalando até a mercearia
— um pão saloio e uma alface, se faz favor, ponha na conta.
As brincadeiras no sótão com o filho da vizinha,
mais velho do que eu, que queria ser palhaço à revelia do pai.
A primeira menstruação que a avó escondeu do avô perante a
minha incompreensão. Avó, eu estou doente, não devemos
contar ao avô
para irmos ao hospital?
A escada de madeira para subir à figueira e comer, empoleirada no
ramo mais alto, mais figos do que os que trazia para a sobremesa.
A catana pendurada na oficina da garagem recordando tempos de
Moçambique, contados à noite durante um jogo de crapô, as
cartas sobre o pano verde, os dedos grossos e deformados que as
faziam deslizar com mestria para as dividir em dois baralhos.
O Ânglia branco em que saíamos para ir à praia da Parede inalar o
iodo do mar e esfregar as algas na varizes.
E agora o eco da casa. As plantas secas no pátio. A figueira
esquecida. A capoeira vazia. As teias de aranha na garagem.
A placa que diz “vende-se” e o silêncio.
Sei que não vais dizer mais nada. E eu também
nada mais posso dizer, um adeus é um adeus.
Aqui fiquei, inútil sentinela, um jardim que secou. Acendo
fósforos e queimo memórias olhando a porta parada
no esquecimento dos dias.
A chuva entra pela janela que me esqueci de fechar
já não importa
o vento partiu os vidros e invadiu o quarto
sacudiu as cortinas, ao papéis
teu roupão atrás da porta
o teu cheiro.
O tecto e eu esquecemos do bolor.
Sou trapezista num circo. Tive hoje mais um grande
desempenho na corda bamba — assim o exige o meu público,
que tudo pareça fácil, que eu seja infalível — mas nunca sei
como me sairei da próxima vez.
Aplaudem-me e disfarço, sou até capaz de sorrisos.
Sustenho a respiração em cada tripo salto fingindo
que a força da gravidade não existe
desafiando a morte.
Cá do alto, sentada no baloiço,
observo muda a distância que me separa do público.
Não sou a trapezista. Sou a arena espezinhada.
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Página publicada em abril de 2023
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